20150110
20111219
'Alçapão.'. 2009
Quando penso na palavra alçapão, automaticamente imagino alguém a abrir algo que raramente se vê aberto e inevitavelmente se ouve um ranger vindo de umas enferrujadas dobradiças. De seguida, surgem umas íngremes escadas, ou apenas uma escuridão meio aterradora...
Gaston Bachelard, no seu livro sobre fenomenologia do espaço ("A Poética do Espaço". Martins Fontes 2000) fala-nos do acesso a porões e a sótãos. Nestes locais, Bachelard refere que tendemos a situar as 'lembranças da uma vida íntima', e que por vezes associamos a alguns medos, talvez ligados a um imaginário próprio da natureza dos locais em que os encontramos, muitas vezes sombrios e misteriosos.
Se seguirmos a tradução inglesa de alçapão – 'trapdoor' – podemos adicionar toda uma conjuntura de novos significados ao seu simbolismo. Os alçapões passam a ser entendidos como armadilhas, ou portas armadilhadas (trap-door). Nisto o alçapão passa a ser algo de profundamente misterioso, quer desde logo no seu modo estranho de funcionar, quer naquilo que desvendam. Este simbolismo mais intenso e misterioso, que as apenas-portas não o detêm, surge-nos na nossa percepção como uma metáfora, como que num degrau surpresa, muito esquisito e desconexo de uma escadaria mãe, assaltando-nos os sentidos por ser realmente um elemento estranho que nos desperta a atenção.
Em Bachelard, as portas aparecem referidas com uma enorme carga simbólica, de transição, em que aquele que os atravessa, pode ver transformado inesperadamente o seu universo de significados, assim como personagem de Alice em 'Alice no País das Maravilhas' de Lewis Carrol. E podemos considerar de facto que um alçapão será muito uma espécie de porta, apenas com uma estranha forma de funcionar. A Alice na sua história, por exemplo, entra num sem número de portas, pequenas, grandes e de média dimensão, e experimenta diferentes percepções da realidade, diferentes por cada porta que passa.
Curioso, é quando encontramos alçapões em locais, desconexos do universo simbólico do privado e particular que Bachelard constantemente se refere, mas sim, em locais públicos, em jardins ou em descampados meio perdidos. Um pouco como Alice na sua história ao passear pelos seus jardins. E diria mais, a história de Alice está repleta de portas, mas com a carga simbólica de alçapões. De acordo, com os diferentes significados simbólicos de cada um, parece ser justo dizer-se que a esta história são devidos os alçapões.
Os alçapões, para além do mais ocultam uma escuridão, ou uma penumbra, que só por si, nos fazem entrar em contacto com a nossa mente e o nosso imaginário mais primitivo. Como se viajassemos até uma infância de curiosidade ou receio sobre uma nova descoberta, trazida por todos os nossos sentidos despertos, sabendo apenas que o da visão, é substituído pela nossa imaginação. Os alçapões ocultam em si, todo o terrífico e o magnífico, e apenas cabe a cada um, o seu modo próprio de o enfrentar.
20111108
'Somos cidadãos precários antes e depois de sermos trabalhadores precários. Se outros passam por dificuldades semelhantes, as causas das dificuldades por que passamos não podem estar exclusivamente em nós. (...)
A aceleração do momento faz-nos esquecer que as decisões urgentes dificilmente são grandes decisões. Discutimos o projecto da casa ou apenas a cor dos azulejos da cozinha? Estamos a assistir a uma destruição ou a uma construção? E discutimos com quem? Com bombeiros ou construtores civis? Discutimos entre nós e com outros ou discutimos entre nós enquanto outros discutem sobre nós? Discutimos entre nós a cor dos azulejos enquanto outros discutem o projecto da nossa casa? E a casa será habitável?'
de Prefácio de 'Portugal - Ensaio contra a Autoflagelação', Boaventura Sousa Santos, Almedina 2011