20090331

'(...) Ia à caça. Ao chegar a uma encruzilhada de caminhos deteve-se, enrolou-se prolixamente sobre si própria, mexeu-se ainda um instante, acomodando-se e, depois de baixar a cabeça ao nível dos seus anéis, assentou a mandíbola inferior e esperou, imóvel.
Minuto após minuto, esperou cinco horas. Ao fim desse tempo, continuava igualmente imóvel. Má noite! O dia começava a romper e ia retirar-se quando mudou de ideias. Sobre o céu lívido do leste recortava-se uma imensa sombra.
- Gostaria de passar perto da Casa - disse a jararaca para consigo. - Há dias que sinto ruído e é mister em ficar alerta...
E deslocou-se prudente para a sombra.
A casa à qual Lanceolada* se referia era um velho bungalow de madeira, todo pintado de branco. (...) Desde tempos imemoriais que o edifício está desabitado.(...)
Um barulho inequívoco de porta aberta chegou aos seus ouvidos. A víbora ergueu a cabeça e, enquanto notava que uma loura claridade no horizonte anunciava a aurora, viu uma sombra estreita, alta e robusta, que avançava na sua direcção. (...)
- O Homem! - murmurou Lanceolada. E, rápida como o raio, enrolou-se em posição de alerta.
A sombra estava sobre ela. Um pé enorme caiu ao seu lado e a jararaca com toda a violência de um ataque no qual apostava a vida, lançou a cabeça contra aquilo e recolheu-a na posição anterior.
O homem deteve-se: julgara ter sido uma pancada nas pernas. Olhou para a erva à sua volta, sem mover os pés; mas nada viu na escuridão, quase inalterada pelo vago dia nascente, e seguiu caminho.
Lanceolada, contudo, viu que a casa começava a viver, desta vez real e efectivamente, com a vida do Homem. A jararaca empreendeu a retirada para o seu covil, levando consigo a segurança de que aquele acto nocturno não era senão o prólogo do grande drama que, em breve, se desenrolaria.'


*
Bothrops jararaca

pg.s 9-10
'Anaconda'
de Horácio Quiroga
Editora Cavalo de Ferro
2005


O governo da cidade de Rio de Janeiro está neste momento a desenvolver a construção de uma edificação perimetral em cerca de 19 favelas da cidade, referindo que a edificação será necessária e importante para a protecção da floresta primária próxima destes locais e contenção do desenvolvimento exponencial destas comunidades.
Há quem já o tenha definido como eco-barreira, mas o termo a ser aplicado a uma construção de alvenaria com três metros de altura e onze quilómetros de extensão, extrapola um pouco qualquer ideia adocicada relacionada com ecologia ou sustentabilidade.

O sociólogo Zygmunt Bauman no seu livro 'Confiança e Medo na Cidade' refere o seguinte texto de Teresa Caldeira relativamente a outra cidade com idênticas preocupações:


«São Paulo hoje em dia é uma cidade de muralhas, levantam-se por toda a parte barreiras materiais: à volta das casas e dos blocos habitacionais dos parques, das praças, dos prédios de escritórios e das escolas (...). Uma nova estética de segurança preside a todo o tipo de construções, e impõem uma lógica sem precedentes baseiada na vigilância e no isolamento».
Quem tem meios de o fazer, adquire um andar num condomínio. Este é como eremitério, materialmente situado na cidade, mas social e espiritualmente fora dela. «Existem condomínios fechados que pretendem ser mundos à parte. A publicidade promete que é possível ter no seu interior uma "vida total", o que significaria a possibilidade de abandonar o meio ambiente da cidade, cada vez mais deteriorado». Uma das características mais salientes do condomínio é o seu «isolamento e distância da cidade (...). Por isolamento entende-se a separação das pessoas consideradas inferiores do ponto vista social» e, como não se cansam de repetir os mediadores e promotores imobiliários «a chave é a segurança, o que significa vedações e muros em redor do edifício, guardas certificados que vigiem as entradas a todas as horas e toda uma série de instalações e serviços (...) que proíbam a passagem aos restantes».

O passo seguinte a esta suposta barreira visual que nos alheia da situação é o já conhecido síndrome do 'grande irmão' (ou seja a Orwellização da coisa, claro está), e em que finalmente os convenceriam, na certa, de que 2+2 são 5:

(continuando com Bauman)

'Em resumo: as cidades converteram-se no depósito de lixo de problemas de origem mundial. Os seus habitantes e aqueles que os representam confrontam-se habitualmente com uma tarefa impossível, seja para onde for que viremos os olhos: a de encontrar soluções locais para contradições globais.'

pg.s 28, 35-36
'Confiança e Medo na Cidade'
- Z. Bauman
Relógio de Água
2006


Notícias relacionadas:
http://oglobo.globo.com/pais/mat/2009/03/28/governo-do-rio-de-janeiro-constroi-muros-para-conter-favelas-755046020.asp
http://blogs.abril.com.br/sintetizando/2009/01/rio-janeiro-tem-muro-ecologico-para-conter-uma-favela.html
http://tsf.sapo.pt/PaginaInicial/Internacional/Interior.aspx?content_id=1184571
http://jornal.publico.clix.pt/magoo/noticias.asp?a=2009&m=03&d=30&uid=&id=301007&sid=58006

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